segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Um certo cara saiu de dentro do meu espelho e, com um urro de felicidade, declarou-se livre. Esse meu idêntico dizia esperar por aquele dia em que eu acordaria perturbado de sono, desatento por uma vida melancólica, para que ele conseguisse fortalecer-se e, finalmente, fugir. Saltou sobre mim e prendeu-me em meu próprio espelho... Meu espelho. Oh, não, minha sanidade repelia o que via... mas a verdade é que estava preso. Minha louca imagem saltou pela janela de casa e pôs-se a perambular pela cidade em meu lugar.
Ousado, destemido, como podia descrevê-lo. Meu mais íntimos desejos e ambições, que com bom senso receava realizar, ele buscou fazer. Estava livre, lá pela cidade, realizando os meus desejos. Ladrão! Visitava sempre novos lugares, jogava seus - meus? - problemas para o vento, tentava sempre o novo, e em semanas conquistava todos a sua volta. Logo, toda a cidade? não deveria..
Sabe, viver dentro do espelho do meu próprio quarto não era assim tão agradável. Toda noite aquele ser que se passava por mim deitava em minha cama e contava-me todas as suas aventuras e perspicácias. Ele era amigável, mas no fundo eu o invejava. Por que não tenta fugir?, perguntava-me. Esse mundo de um espelho é bem melhor, sem medos, sem problemas, respondia. No fundo, eu sabia que queria estar em seu lugar, mas não poderia admitir que não tentara fugir. Não quero quebrar o espelho, não quero arriscar minha vida, nem me machucar. Este mundo é, ao menos, seguro. Em sombras, em um espelho, mas, ao menos, seguro.
Sempre aventureiro e desprecavido, aquele meu semelhante me contava meus mais secretos sonhos sendo realizados a cada dia. Sempre me estimulando a fugir, ainda que suas palavras, muito menos suas atitudes, me ajudassem. Certa noite confessei que tinha medo de quebrar o espelho e, ao mesmo tempo, vontade de fugir. De acordar a cada dia e sentir o aroma suave da vida passando pela janela, buscando espantar o desânimo de olhos cansados, recém-despertados. Sabe, de ser livre. Na verdade, tinha muitos receios. É, é essa a verdade. A vida e a liberdade afinal nos trazem perigos.

sábado, 3 de setembro de 2011

Tabuleiro

Escolha seu jogador. Coloque-o na casa de partida. Lance os dados e ande o respectivo número de casas. Siga as instruções de cada lugar em que parar. Vence quem chegar primeiro.

E tudo parece um lindo jogo.
Tudo parece tão simples do jeito que você enxerga. Objetos são simples quando analisados de cima, e é verdade; quando você joga, eu devo ser a próxima a jogar. Que previsível.
Que linda forma de jogar. Avançando casas sem se preocupar com todo o resto, desesperadamente em rumo à chegada, sem nada a perder. Nada?
Bom, o que se perde quando se ganha um jogo?
Porque é tudo um jogo...

Tudo é um jogo. Tudo é um miserável tabuleiro estirado sobre a mesa, eu sou só as mãos que movem meu boneco sobre ele; eu sou só a mão que lança os dados e pendo à deriva da sorte. Minha sorte, sua sorte.
Não importa mais a minha vontade, quando devo seguir somente e apenas o dado e o tabuleiro. Droga de tabuleiro, droga de jogo, droga de bonecos, droga de mãos. Droga de sorte. Droga de você.

Três casas à frente.
Fique uma jogada sem andar.
Ande duas casas para frente e, em seguida, mova um jogador duas casas pra trás.

Jogos de simples instruções, que, entretanto, minhas mãos não conseguem seguir. Meu personagem não conseguem andar. Poderia correr à chegada, mas a cada vez que ando paro em uma casa tão miserável quanto esse jogo estúpido.
Enquanto você anda. Você segue. Pois bem, tão risível estar cada vez mais perto da chegada, não? Tão bom ganhar.. Vencer, vencer.

Minha vez de lançar os dados.
Não sei se você lembra, mas sou desgovernada. Não sei brincar.
E não sei fingir que a vida é essa brincadeira.
Vou lançar os dados, e por entre meus dedos sairá o meu azar, a nossa sorte.
A sorte que me deixará aqui, parada em onze casas miseráveis, enquanto seu personagem alcança a gloriosa linha de chegada.

Por entre meus dedos rolou a derrota, pelo meu cansaço desisti de competir.
Parabéns, vencedor, você chegou lá.

Minhas mãos desobedientes não precisam mais revoltar-se ao lance de dados.
Agora elas acenarão apenas adeus.

Já podemos guardar o tabuleiro.