Em volta, tudo era breu. Dentro da sala, claridade, graças à frágil lâmpada dependurada ao teto. A vidraça, que substituía paredes, refletia o interior da sala, de forma que, ao olhar para fora, não me fosse possível decifrar os mistérios que o anoitecer esboçava.
Do mesmo modo que o fizera durante toda a temporada naquela serra, a chuva caía, dessa vez leve e insistente, bem como sorrateira e insistentemente sempre voltam os velhos hábitos que nos são difícil de desapegar. A chuva provocava as folhas, densamente acomodadas ao redor das vielas e escadas asfaltadas que conduziam à sala, provocava as janelas e também o chão descoberto, com seu contato extenuante - impacto e fluidez.
Eu estava ocupada demais para ir à porta enxergar o que a vidraça refletida queria me omitir. Não cederia à manhas de minha mente curiosa, não levantaria por capricho. Toda vez que o episódio se repetia, redesenhava mentalmente o espaço de acordo com minha lembrança, como que para isentar-me da culpa por não ter ido confirmar tal verossimilhança. Contive-me aos sons. Satisfiz-me em decifrá-los.
Pingos parecem passos. Folhas parecem gente. Reflexos parecem uma realidade que se duplicou. Escuro parece o que se quer que ele pareça. Por alguns momentos tinha certeza de que estava alguém vindo me fazer companhia, ao soar desses passos insistentes sobre gente verde que o vento balançava. Aguardava em meus afazeres, e ninguém vinha.
Pingos eram sempre passos. Por vezes, olhava para as grandes janelas na esperança de ver de quem eram eles, esquecendo-me de que nada podia ver através destas. Assim foi passando o tempo, em suposições e rascunhos de narrativas imaginárias, com vários personagens que poderiam possuir passos à noite, que quebravam as folhas e levavam os galhos na corrente.
Pingos só parecem passos quando se deseja que sejam de alguém.
De fato. Eu me sentia sozinha.
Dessa vez, ao ouvir passos, eram-me apenas pingos - não virei. Só que pingos não abrem portas.
Ele entrou na sala com um grande sorriso. Dessa vez eram passos de alguém.
Ele me disse algo, que eu respondi sem fazer muito caso. Ele me estendeu a mão. Passamos pela porta, apagando a luz.
Estávamos a dois, rumo ao breu.
- Nossa, não consigo ver nada, está tudo preto!
- Não tem problema, eu vim por aqui, sei o caminho. Só cuidado pra não tropeçar, mas qualquer coisa, eu estou te segurando.
- Deixa só eu abrir o guarda-chuva.
- Não, não precisa, a chuva parou faz um tempo, não percebeu?
Não tinha percebido. Pensei que apenas estava bem sucedida em ignorar passos inconcretos.
E fomos os dois, de mão dadas, frente ao meu desconhecido. A vidraça, agora, não refletia mais nada, posto que dentro da sala não havia mais luz. A vidraça não existia mais. Para trás, tudo era apenas breu, e o breu absorveu os nossos passos, gente verde, o chão e os pingos, o breu engoliu tudo.
Até que seguimos o nosso caminho, e o breu virou estória.
3 comentários:
Como você tem a capacidade de transformar tudo em textos profundos? Continue com isso!
Carla Faria
Meu preferido, haha.
Obrigada, Carla!
E fico feliz em saber disso, Bernardo!! Espero fazer ainda melhores, quem sabe algum dia vc tenha um novo preferido :)
Beijos!
Postar um comentário